Numa noite de sábado, esgotada pela rotina exaustiva e noites viradas no trabalho da semana anterior, Mariana Cândida, uma mulher de 33 anos, publicitária, solteira, moradora na zona sul de São Paulo, resolveu não ceder à tentação de sair para assistir um filme com as amigas e decidiu descansar. Essa atitude não era comum, afinal Mariana Cândida não é muito boa em dizer “não”. No entanto, havia algo que estava chamando mais a atenção dela no último mês e ela não trocaria por nada a oportunidade de explorar aquela maleta. Há cerca de um mês, sua mãe, Sra Josepha, havia deixado uma bela maleta de couro, antiga, porém polida e bem cuidada, que dentro tinha fotos e pertences de suas antepassadas.
Existia uma regra intrínseca para Mariana Cândida, só se tem direito a um prazer após fazer suas obrigações, e então Mariana Cândida passou o sábado preparando sua casa para que a aventura pudesse começar. Às 19 horas tomou um banho demorado, vestiu uma camiseta leve e confortável, pegou uma taça de vinho e se sentou na chaise munida de sua maleta. Olhou bem para ela, a segurou com carinho e respeito, fechou os olhos como se estivesse pedindo permissão ou fazendo uma oração e lentamente abriu o zíper, às 20 horas começava a viagem no tempo de Mariana.
No outro lado da cidade Alzira, uma mulher de 50 anos, ensino médio completo, mãe de 3 filhos, moradora na zona leste de São Paulo, acabava de sair do trabalho às 20 horas, ela era faxineira e estava feliz por ter trabalhado 12 horas numa casa no Morumbi de uma senhora muito fina e generosa, Dona Mercedes, era a primeira vez que trabalhava ali, foi indicada por uma das empregadas fixas da casa que era filha da vizinha dela, e ela via uma oportunidade de gostarem dela e a contratarem efetivamente. Ela trabalhava como faxineira em algumas casas, mas não tinha todos os dias fixos e isso atrapalhava seus planos de conseguir ajudar seus filhos a terem um futuro melhor e mais promissor.
Existia uma regra explícita para Alzira, o dinheiro que recebe numa faxina tem que ser 90% direcionado para as contas de consumo da casa, mas 10%, seja quanto for esse valor, deverá ser destinado a algum prazer que satisfaça a todos. Normalmente é uma comida ou alguma bebida, e nesse dia ela comprou fubá, abobrinha, tomate, extrato de tomate e um pouquinho de carne moída para fazer uma polenta com molho que ela e os filhos adoram degustar alegremente juntos brincando de quem encontra a carne no prato, de tão rara que é. O dinheiro era pouco, mas a vontade de estar juntos era grande.
Neste mesmo sábado, às 20 horas, na zona norte da cidade de São Paulo, Maria Carolina, uma mulher de 47 anos, empresária, casada, 4 filhos menores 7 anos, tenta organizar a logística para conseguir sair com a família para a festa de aniversário de 50 anos de casados de seus pais. Eles estão atrasados e apesar dela ter se organizado antes e ter contratado, pago e organizado as Bodas, ela sabe que seu atraso pode gerar um conflito na família e tornar o clima tenso na festa. E isso é tudo que ela não deseja para essa noite.
Existia uma regra implícita para Maria Carolina, que era a de saber que se ela fosse a irmã fazendo o mesmo para o pai ou o irmão fazendo o mesmo para a mãe, seria incrível para eles, mas como não foi, tudo precisava estar impecável, inclusive o horário de chegada dela, pois seus gêmeos e gêmeas chamavam atenção suficiente para repararem sua falha, o atraso.
No bairro Jardim Europa, Sra Antonia Francisca, 84 anos, recebia seus convidados para um jantar da alta sociedade. Ela havia organizado tudo, como fazia há mais de 60 anos. A grande verdade é que ela não gostava das exigências desses eventos, mas sabia da importância de bem receber essas pessoas que eram amigos de uma vida inteira de sua família e certamente seriam ótimos colaboradores das campanhas que ela promovia para arrecadar fundos eleitorais para o marido.
Existia uma regra madura para Sra Antonia Francisca, que era a certeza de que fizesse o que fizesse, não seria suficiente para que tudo corresse bem totalmente, pois as expectativas alheias moram num endereço não encontrado pelas suas dedicadas e delicadas correspondências.
Às 20 horas, embaixo de um viaduto entre a ligação leste oeste próximo ao centro de São Paulo, Filomena, uma mulher de 24 anos, analfabeta, mãe de 3 filhos, chega com seus filhos e seu cachorro Tobi no seu carrinho de catadora na sua barraca onde seus gatos, Tião e Leide, cuidam da entrada e dos arredores para os ratos não invadirem o local. Ela sorridente canta uma musiquinha alegre para as crianças e pega seus pertences para aquecer água para improvisar uma sopinha para eles comerem.
Existia uma regra gritante e realista para Filomena, a de que não havia ontem nem amanhã, a vida era o hoje e sobreviver a este dia já seria um grande presente, mas viver o dia seria um presente maior ainda. Então todos os dias ela acordava, fechava seu lar, pois assim chamava sua barraca e seus pertences, lavava o seu rosto, e o rosto das crianças e as deixava na creche para poder catar tudo que pudesse para ter dinheiro para alimentá-los. Rezava pela saúde deles e cantarolando levava esperança, leveza e doçura para os ouvidos e memórias das crianças, Contava com seu cachorro, seus gatos e sua fé.
O que havia em comum na vida dessas mulheres tão diferentes?
Todas elas, sem exceção, de uma forma ou de outra, nesse mesmo dia e nesse mesmo horário estavam se preparando para algo que faria sentido não só na vida delas, mas na vida de todas as pessoas envolvidas afetivamente com elas.
A mente feminina é um espaço amplo onde o não fazer sentido para outras vidas tira o sentido do que é feito por elas. É como se cada atitude, consciente ou inconsciente, tivesse o pré requisito de alcançar um outro coração e assim sucessivamente.
Durante toda a existência feminina, parece haver uma responsabilidade intrínseca muito exacerbada nas suas escolhas. Se pensarmos nas escrituras, logo lembraremos da Eva mordendo a maçã e o paraíso mudando de forma e virando um lugar em que temos que honrar o que recebemos, nada mais sendo gratuito e tudo dependendo das escolhas para criarem um fluxo coletivo e não mais individual. E em algum momento isso pôde ser interpretado como “culpa” da mulher, uma forma simplista de explicar algo que é tão maior, tão mais lindo e tão educativo, algo que desde sempre quis nos ensinar carinhosamente o nosso papel dentro da unidade que é o universo que vivemos.
Vamos pegar histórias recentes na sétima arte…
Se olharmos alguns papeis femininos no cinema nos últimos anos, perceberemos que as mulheres têm uma forma de superação, de dedicação, de perdão, de compreensão além dos limites, de resistência a dor física e emocional, uma resiliência que parece transpassar a realidade, mas que sinto informar, são características reais, é a arte imitando a realidade. Pense em Lily Gladstone em “Os Assassinos da Lua das Flores”, uma interpretação dolorida, sofrida, silenciosa, de meios sorrisos, de dúvida, de culpa por amar e se entregar, de uma força e resistência tão grandiosa a ponto de ser mais forte do que tramaram contra ela, de se responsabilizar por algo que fugia ao controle dela, e de negligenciar sua intuição, um papel incrível de uma realidade explícita até os dias de hoje, se compararmos aquele cenário a qualquer comunidade do nosso país onde muitas mulheres protegem os seus e se arriscam para que outros tenham vida.
No mesmo ano temos Emma Stone ganhando o Oscar por “Pobres Criaturas’’ e nos mostrando que está na hora de papeis femininos mostrarem o quanto poderíamos ser melhores se aceitássemos com a mesma resiliência e naturalidade a possibilidade de sermos livres e felizes também. Bella tem a inocência de uma criança no corpo de uma adulta, mas é filha do sofrimento desse corpo, mas com a capacidade incrível de se permitir, pois na sua idade mental ainda não tem as restrições intrínsecas de uma mulher. Vale a pena assistir os 2 filmes e fazer uma análise da força de ambas.
Ainda em “Anatomia de uma queda”, a atriz Sandra Hüller interpreta uma esposa que aceitou em vão todas as imposições do marido para que a vida da família melhorasse e agora está tentando provar sua inocência até para si mesma em relação à morte dele. Tanta dor e força num papel e tanta dúvida, pois só uma mulher pode ter a sensibilidade de acreditar que a dor dela era enorme em meio ao silêncio e ao barulho ensurdecedor de boicote daquele homem que não estava bem e não aceitava que ela estivesse se permitindo realizar algo no meio de tudo isso. Detalhe, estavam longe o suficiente de tudo e de todos para que fossem obrigados a ouvir o mais íntimo e profundo silêncio de ambos.
Mas o que realmente inspirou esse texto foi uma cena do filme “Zona de Interesse”. Uma cena peculiar e que pode não ser a mais lembrada por todos, afinal o filme é forte e estarrecedor o suficiente para que ela talvez passe despercebida. Uma garota judia que trabalha na casa do oficial Höss sai escondida a noite e uma câmera noturna mostra essa menina percorrendo os campos de trabalho forçado dos prisioneiros e lá ela semeia maçãs para alimentá-los secretamente. Ela volta correndo para casa e sempre fica aquela sensação de que será pega. Infelizmente a sua boa ação alimentou muitos, mas matou um prisioneiro que briga com outro pelo alimento. Essa cena aparece duas vezes no filme, no momento em que as filhas de Höss adormecem enquanto elas sonham, outra menina tenta salvar pessoas que não conhece, mas são, assim como ela, prisioneiras, apesar de parecer que são menos prisioneiras quando a esposa de Höss, interpretada mais uma vez pela atriz Sandra Hüller, dá as empregadas da casa as peças de roupas que não cabem nela das prisioneiras que são queimadas nos fornos de Auschwitz-Birkenau ao lado da casa. São muito tocantes essas cenas da menina tentando salvar um pouco da dignidade dos prisioneiros com as maçãs, pois quantas mulheres fazem esse trabalho invisível de cuidado?
Na vida real, na sétima arte, na casa do vizinho, do outro lado do mundo, do país ou do outro lado da rua, certamente, nesse momento, há uma mulher fazendo algo que a maioria não perceberá que foi feito, pois estará pronto e será como se sempre estivesse ali sem a intervenção de ninguém, pois ela não ousará dizer que ela que fez, que se cansou, que essa escolha colocou outras necessidades dela em stand by, pois isso, ainda é mal visto e ofensivo em 2024.
Voltando para nossas histórias…
Mariana abriu a mala de D Josepha e lá encontrou além de belas fotos, lindos livros de receitas de sua mãe, avó, bisavó e antepassadas. Achou curioso o bilhete que dizia “Você precisa começar a anotar suas receitas! Com Amor. (por) Nós”. Começou a folhear e encontrou desabafos, poemas, poesias, textos e pedidos de socorro unidos a pedidos de força em todos os livros. Era o início da lucidez de Mariana em relação às mulheres que vieram antes dela em sua família e ao contrário do que ela imaginava, elas eram fortes, firmes, resilientes e excelentes pensadoras mesmo atrás de seu fogão, de sua pia, de seu tanque e de sua aparente rigidez em relação ao prazer e seu aparente conformismo.
Alzira foi contratada por D Mercedes e a senhora sábia convidava seus filhos para um almoço em sua casa todo final de mês, tamanha admiração que teve quando soube que em meio às dificuldades aquela família nunca esqueceu que estarem unidos e saberem valorizar mais a presença que o banquete. Ah, ela fez questão de arcar com os estudos deles.
Maria Carolina chegou no horário, ninguém viu, ela só seria notada se ela falhasse, Nesse dia escolheu não mais se preocupar em falhar, afinal, como já dizia o sábio Einstein, aquilo que o homem ignora não existe para ele. Sua inexistência a permitiria existir para ela e foi então que começou a se dedicar mais a si mesma.
Filomena viveu mais um dia como se fosse o último preservando seus filhos, animais de estimação, seus pertences e “seu lar”, transformando lixo em “luxo” e talvez não percebendo que o que fazia era mais alimentar mais que seus filhos, ela era uma das pessoas que ajudam a preservar o meio ambiente que é o lar de todos.
E a Sra Antonia Francisca?
Essa estava feliz, pois a festa havia acabado e na sua sabedoria escapou de fininho e se dirigiu ao jardim de sua casa e caminhando olhou a noite estrelada e a lua que iluminava seu lindo quintal, e antes que a equipe começasse a desmontar a festa, pegou uma garrafa de vinho, uma taça, uma folha de papel e uma caneta. Sentou na mesa, sorriu enchendo a taça de vinho tinto e após o primeiro gole escreveu na folha – “As expectativas alheias moram num endereço não encontrado pelas minhas dedicadas e delicadas correspondências” – enquanto cantarolava olhando para o céu com um riso contemplativo um trecho da música Cálice do Chico Buarque pensando:
“Ah se eles soubessem que gosto e compreendo as letras do Chico!”
Sheila Carozzi – Comunicóloga, Escritora e Redescobridora de todos os seus Mares