Rotina – hábito de fazer algo sempre do mesmo modo, mecanicamente; rotineira.
De todas as coisas que você faz todos os dias, quais você não abdicaria?
A bela e inesquecível música de Chico Buarque, composta em 1971, “Cotidiano”, inicia contando uma história assim:
“Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã”
Ele descreve tão delicada quanto pesada a rotina de um casal que encontra graça e cumplicidade no amor na rotina e apesar das dificuldades. Ele eterniza a doçura ao contar uma história, ou meia história, de uma vida inserida no universo do lar como se fosse blindada para não sucumbir aos caos externo. Valorizando o lugar para voltar e onde é bom se ter a segurança de poder ser quem é e estar ao lado de quem te permite ser.
E em um intervalo de tempo interessante entre o que o mundo existiu dos anos 60 até o final dos anos 80, e que começou a se transformar de forma diferente e mais acelerada nos anos 90, Renato Russo, do Legião Urbana, em 1993, inspirado pela música “Perfect Day” que foi escrita em 1972 por Lou Reed, lança a música “Um dia perfeito”, e fala de uma rotina leve após um susto, como um depoimento numa simplicidade amorosa, tanto quanto a de “Perfect Day”. Ele fala sobre a possibilidade de grandiosidade nos pequenos acontecimentos do dia a dia. E na época Renato falava da mudança da busca por coisas grandiosas e polêmicas pela tranquilidade e calma de ser tudo o que se pode ser com o que tiver de mais simples e real. A maturidade, a doença, o cansaço, talvez foram os gatilhos para que essa linda música tivesse o dom de nos transportar para esse dia perfeito do Renato:
“(…) São as pequenas coisas que valem mais
É tão bom estarmos juntos
E tão simples: Um dia perfeito
(…) Não vou me deixar embrutecer
Eu acredito nos meus ideais
Podem até maltratar meu coração
Que meu espírito ninguém vai conseguir quebrar!
E a rotina segue camuflada em uma narrativa positiva e alienada nas cenas iniciais da primeira temporada da aclamada série “Westworld”, de 2016, com a anfitriã Dolores Abernathy acordando todos os dias sorrindo, contemplativa, gentil e delicada no ‘seu mundo’, sem despertar para o que ocorre a sua volta e dizendo:
“Algumas pessoas optam por ver a feiúra neste mundo, a desordem; Eu escolho ver a beleza, acreditar que há uma ordem para nossos dias, um propósito. Eu sei que as coisas irão funcionar da maneira que elas devem ser feitas.”
É impossível passar por toda a temporada sem ser provocado por esse acordar sem despertar, pois Dolores, assim como o nome diz, é a portadora de todas as dores desse mundo criado para entreter o mal e ter como cúmplices a bondade e pureza dos bons. A rotina de Dolores é mantida por ela, por todo o tempo que ela pôde aguentar, pois ela não parecia querer despertar, era como se soubesse que aquilo a contaminava, inevitavelmente, e agora ela precisaria lidar com a dor de uma forma que machucaria mais alguém, além dela.
Em 2023, Win Wenders nos presenteia com o filme “Dias Perfeitos”, que narra a rotina de um homem que limpa banheiros públicos em Tokio, feliz. Hirayama, personagem principal, se permite viver suas 3 grandes paixões todos os dias, elas são a música, a leitura e as fotos que tira das árvores procurando seu komorebi, efeito deslumbrante da luz entre as folhas das árvores. Mas há outras paixões, o cuidar é uma delas, e ele achou um modo de fazer isso sem se expor diretamente e pessoalmente às possíveis decepções com pessoas, pois ele evita relações pessoais. As poucas relações que ele tem, são delineadas em um limite inegociável e muito visível. Ele escolhe como, com quem e quando ele permite que alguém participe de sua rotina. Apesar de sua vida diferente e quase deslogada da tecnologia em sua volta, ele é inspiração e motivo de curiosidade para os poucos seres humanos que dividem momentos com ele. Seu jeito peculiar parece dar oxigênio para esse interesse pelo belo na simplicidade brotar e florescer de alguma forma nas pessoas.
Há muito silêncio vocal e muita escuta interior entre as músicas, é um filme forte, belo, que emociona em alguns momentos e desmistifica a valorização do que se é somente através do trabalho que realiza, como se esse valor só pudesse existir se relacionado a altos cargos e salários e não há um trabalho dedicado, excelente e bem feito. Hirayama não insiste em que sejam e vejam como ele é e vê, mas impõe que seja valorizado e respeitado, pois ele sabe que continuará a ser excelente. Sua aspiração parece ser entre ele e ele mesmo, sem medir ou dar notas ao que não é quantificável, há muita sabedoria. E quando sua sobrinha o visita e quer vivenciar mais da vida dele, pois está desgostosa com a vida que ela conhece, sabiamente ele fala para ela que “há muitos mundos no mundo”.
E quando termina o filme,você fica com vontade de olhar e sentir a sua vida com a mesma intensidade e entrega que ele apresenta no dia a dia dele. Afinal, muito provavelmente, o seu trabalho, do qual você reclama horrores em toda e qualquer oportunidade, lhe proporciona uma vida material melhor que a dele e não envolve lidar com os dejetos, pelo menos não os reais e físicos, que ele lida todos os dias. Há uma analogia nisso? Limpar a sujeira dos outros? É sobre como você limpa e não como os outros sujam.
Então me diz, o que você tem o hábito de fazer ser especial mesmo sendo algo que pode ser feito sempre do mesmo modo, mecanicamente; rotineiramente, mas você escolhe fazer ser algo com diferente cada vez que faz?
O que você faz todo dia que te deixa feliz?
Seria a felicidade algo como a frase de efeito que fala sobre repetição e excelência? Ou seria a felicidade permeada em diversos pequenos acontecimentos em que nos permitimos estar presentes e desfrutar de cada um deles como se fossem pequenos milagres?
Ou ainda seria viver como se cada momento fosse o último e devido a isso sugar toda a beleza, ensinamentos, emoções, sejam quais forem, vivenciar intensamente e com muita gratidão cada momento desse dia. Mas pode ser que a felicidade tenha mais relação com as escolhas inteligentes e respeitosas que conseguimos fazer por nós, sem prejudicar os outros e sem abdicar do que é importante para nós também.
Se quiser, nós podemos reduzir a explicação com o nome de um hormônio, a serotonina. E reduzindo a um hormônio, podemos ‘dar um Google’ e descobrir a ‘fórmula da felicidade’. Surpreendentemente ela nos coloca numa lista de atividades que envolve estar com pessoas, rir, se permitir fazer o que te dá prazer, e, pasmem, depende só do nosso “Sim”para viver isso. E não há problemas em seguir essa receita do Google, afinal, consumir alimentos ricos em triptofano, como nozes e sementes, caminhar ao ar livre, expor-se ao sol e meditar, mal não fará. Seja qual for o seu conceito sobre felicidade e ser feliz, uma coisa parece estar em sintonia em todas as versões e opiniões, a Felicidade é sobre sentir prazer, calma, paz, satisfação e tranquilidade no que está vivendo. E há algo imprescindível nisso, que é ESTAR vivendo e não sobrevivendo e passando pelos momentos sem sentí-los.
E nesse dia que pode ser perfeito pelo simples fato de existir e estarmos nele, ou pode ser apenas mais um dia que trará seu valor no decorrer da vida, normalmente após ter passado e então revelado a sua importância tardiamente exatamente por já ter se despedido, eu recomendo que vivamos cada um de nossos dias, com a certeza de que nenhum é em vão e todos são como retalhos que costuramos a nossa linda colcha que é a vida.
Todos os nosso dias serão, perfeitos ao seu modo, um de cada vez, inseridos na rotina, nas escolhas, até na impossibilidade de escolher, nas obrigações, nas alegrias e nas dores, cada um com seu propósito, basta olharmos fixamente para eles e nos comprometer em vivê-los uma a um, da melhor forma que pudermos. Pois como já dizia Drummond, “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”, e vamos combinar que a felicidade combina com esses dias que queremos que sejam perfeitos, mas que são perfeitos por si só.
por Sheila Carozzi – Comunicóloga, Escritora e Redescobridora de todos os seus Mares