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Recanto dos Sonhos – Uma despretensiosa Zona Azul*

* “Zonas Azuis” é o nome que se dá a lugares em que comprovadamente as pessoas têm mais longevidade devido a um estilo de vida baseado em hábitos mais saudáveis que inclui a alimentação, um propósito, a espiritualidade, as relações pessoais e atividades físicas. Hoje, são cinco ao redor do mundo: Okinawa, no Japão, Loma Linda, nos Estados Unidos, Icária, na Grécia, Península de Nicoya, na Costa Rica, e a Sardenha, na Itália, onde o estudo começou.

 

Carmela abriu a janela. Que dia lindo que estava lá fora. O céu estava de um azul que oscilava passando do azul piscina, ao azul do bebê até chegar no azul royal, um prato cheio para quem gosta de azul. O sol já havia aparecido e reinava onde uma brisa leve dissipava quaisquer tentativas de nuvens. Ela espiou a casa do outro lado da rua, era a casa rosa, e era delicioso escutar o despertar de dona Ana. Exatamente em frente, a cortina se mexe. É agora! Vai começar!

Ana abre a janela, se espreguiça, e com os olhos espremidos, boceja sem a mão na frente, e ainda com os braços esticados para cima, dá o seu sonoro “Bom dia, Dia!!!” Olha para a vizinha com um sorriso escancarado que alegra o dia de qualquer pessoa e dá uma risada bem gostosa que faz com que você ria junto, nem que seja internamente. Ela sabia que seu bom dia alegrava a vizinha Carmela, da casa lilás, e então caprichava ainda mais!

Naquela rua era assim, todos se conheciam, e há muito tempo. Cada um com sua janela se abrindo para um novo dia, cada um com sua rotina quase que cronometrada, tudo se repetindo como numa partitura daquela música que você repete várias vezes, de tão agradável que é.

De uma das casas, a amarelo bebê, da Dona Lenny, vinha o aroma do café passando no filtro de tecido, manchado, amolecido, úmido, quente, lento e perfeito como todo café deve ser para brindar o amanhecer. Da outra casa, a da esquina, a verde água, da Dona Aurora, vinha o cheirinho da broa aerosa que invadia a rua como se te convidasse para dançar junro com as sementes de erva doce que parecia estarem dançando um balé na fumacinha que saiu com a forma recém retirada do forno. Da casa azul piscina, da Dona Elza vinha o inconfundível perfume do seu bolo, que se você perguntasse de qual sabor ele é, ela responderia que é “bolo bolo”, aquele bolo fofinho, branquinho, macio, que parece um mini colchão quando você dá uma leve apertadinha nele. Na casa cor de pêssego, da Dona Sebastiana tinha pão de queijo, e não tinha uma vizinha que não fechava os olhos e respirava fundo ao abrir a porta da cozinha para sentir o bálsamo daqueles pães de queijo, afinal, eles eram como sino que toca para avisar uma missa. Era quarta-feira, não era missa, mas era como uma oração, era o dia do café das vizinhas.

“Rua sem Saída” é assim, como uma vila, como uma comunidade, até como um país independente. E o Recanto dos Sonhos era esse lugar. Poderia até ser chamado de uma ilha intacta por sua natureza generosa, amorosa e amigável. Ali existia cumplicidade, acolhimento e felicidade, muita felicidade.

Às 8 da manhã o Recanto já era só delas. Maridos, filhos e ocasionais hóspedes que visitavam as casas, já estavam a caminho do trabalho, dos compromissos e da escola, e elas já tinham sido o amor em forma de cuidado com eles, e inegociavelmente, agora era a hora delas, a hora em que não entra e nem sai nenhum carro daquela rua, a hora e o dia em que o Recanto virava dos Sonhos.

Dona Maria morava na última casa da rua, de cor coral, uma mulher forte, de força mesmo, até física, que carregava o mundo nas costas e o universo no coração bondoso, que não era boa de cozinha, mas era um primor da limpeza e organização, abria a porta da casa dela sorrindo um sonoro “Bom dia Vizinhança” e levando a mesa para fora, voltava correndo para dentro e pegava seus banquinhos, uma toalha branca que de tão branca parecia com um sabão de coco novinho, daquelas de dar inveja a qualquer varal vizinho. Ela levava um vasinho com flores colhidas do seu quintal e seu jogo de bule e xícaras esmaltadas que ela se orgulhava de ter ganho da Dona Ingrid, uma antiga patroa alemã com quem Maria trabalhou de babá de sua filha Ágata, e que explicou a ela que na Alemanha antiga descobriram que esse revestimento não deixava gosto metálico e nem ferrugem invadirem o sabor da comida, e Dona Maria contava essa história, vez ou outra, era só alguém elogiar seu lindo jogo de café. Ah! Ela falava que a Dona Ingrid gostava de brincar com o nome da filha e do revestimento, e ela falava “vamos tomar café da caneca de Ágata” e dava uma risadinha contida, estilo a discrição alemã.

A mesa posta e as portas começavam a se abrir, uma a uma, como se sincronizadas. O silêncio da rua era tomado pelas vozes femininas, risadas, saudações, brincadeiras e cada uma trazia seu quitute, elas se encontravam ao caminhar em direção ao final da rua para chegar na mesa da Dona Maria, que sorridente as esperava correndo para pegar o leite que avisava num apito estridente que estava pronto para se vestir de Ágata e ir para a mesa.

Os sorrisos, a paz, a leveza e a alegria daquelas manhãs eram a prova de que não precisa muito para ser feliz, os passos que saíam cansados de cada porta iam se tornando leves e macios como se pisassem em nuvens, era como se todo o cansaço saísse para descansar enquanto elas se permitiam desfrutar daquelas manhãs, quase que secretas, às quartas-feiras, e recarregar as baterias.

Em poucos minutos já estavam rindo, contando histórias, sentando, uma a uma, ao seu modo, se movimentando nos bancos, que sem encosto permite que você gire 360 graus para estar disponível em todos os lados, iam abrindo seus corações, dividindo um pouco da vida, do dia a dia, se emocionando, e olhando todas para o mesmo horizonte, o horizonte onde faça chuva ou faça sol, os dias nascem, morrem, renascem e trazem novas oportunidades, elas se conectavam por inteiro.

Naquele recanto, os sonhos viravam realidade. E foi assim que elas criaram uma horta comunitária, e fizeram com o que tinham e como podiam, no muro do final da rua, e penduraram garrafas pet onde plantaram suas ervas e temperos para curar quaisquer dores e incrementar quaisquer pratos. Cada casa tinha, na sua frente, embaixo da janela e ao lado da porta, uma floreira e pelo menos um vaso, com couve, tomate, alguma verdura verde escura, ou até uma frutífera, e às vezes uma linda Primavera ou um Jasmim que contornava a porta. Elas faziam essa atividade juntas e em conjunto, para todos desfrutarem. Elas transformaram aquela rua em um lugar feliz para voltar.

E não era por falta de dificuldades, desafios e traumas, não, A história de cada uma dessas mulheres trazia uma série de tribulações dignas de um filme. Eram esses encontros e esse lugar que construíram e transformaram em um lar que funcionava como óleo de Lorenzo para a cura ou, pelo menos, para lubrificar a alegrias que guiava as boas escolhas, o senso de comunidade e de servir e derrubar os muros que o medo e as mágoas poderiam construir.

Elas intercalavam as falas e as histórias, mas sempre se emocionavam ao mesmo tempo e também riam ao mesmo tempo. Essa energia sincronizada que alimentava essa conexão que germinava e florescia nelas e em todos ao seu redor.

Atrasada, como sempre, e para que todas rissem e a abraçassem em conjunto, chegou Marisa, na sua linda bicicleta azul marinho brilhante, parando em frente de sua casa violeta, e dizendo que já estava indo. E entrava correndo lá dentro de sua casa para pegar seu delicioso pão caseiro, o pão que todas amavam, feito pelas mãos habilidosas e carinhosas daquela vizinha que amava sair cedo para entregar os produtos que vendia para embelezar as mulheres do bairro, mas não sem antes assar seu pão, que chegava a fazer alguns vizinhos sonharem com a iguaria e acordar com o estômago roncando, de fome, ou vontade.

Agora a mesa está completa! Foi a frase que todas elas falaram juntas, sem combinar previamente… e caíram na risada quando se deram conta do que fizeram!

Elas brindaram com suas xícaras e começaram a degustar as delícias, e foi uma sinfonia de “hummm”, “miam”, “uau”, e entre risos e sorrisos, mais uma vez, reafirmaram através da gratidão e da comunhão que não há nada mais potente que compartilhar a mesa e a vida com pessoas que querem viver todo o bem que possam ter.

 

Sheila Carozzi – Comunicóloga, Escritora e Redescobridora de todos os seus Mares

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