Era uma tarde qualquer num supermercado em Cascavel, no interior do Paraná, quando um cliente percebeu algo fora do tom: uma mulher gritava “Marco!” diversas vezes pelos corredores. Sem resposta. Sem pressa. Sem olhar ao redor. era como se jogasse uma rede invisível e silenciosa para quem não sabe o que procurar. Mas quem conhece a velha brincadeira “Marco Polo”, ensinada nas escolas, sabe: a próxima palavra é “Polo”. É o que as crianças costumam responder automaticamente. E é aí que o jogo acaba — e o risco começa.
O homem, desconfiado, filmou a cena e alertou a gerência. O vídeo ganhou as redes sociais como uma denúncia quase sussurrada de um perigo que todos nós fingimos não ouvir. Ele não viu nenhuma criança sendo levada, tampouco há confirmação de crime naquele episódio, mas a suspeita acendeu um alerta maior: até que ponto estamos preparados para identificar as táticas modernas de aliciamento infantil?
O país onde as crianças desaparecem
Em 2022, o Brasil registrou mais de 2 mil casos de crianças desaparecidas — uma média de seis por dia, segundo o Ministério da Justiça. O número real pode ser maior: famílias que não registram imediatamente, casos sem boletim de ocorrência, e uma subnotificação crônica se acumulam como camadas de poeira sobre dados que deveriam estar em negrito nas políticas públicas. A região Sul concentra quase 24% dos casos.
E as crianças, quando desaparecem, não somem para sempre no vazio — somem dentro de sistemas clandestinos organizados, lucrativos, violentos.
Redes criminosas e destinos silenciosos
Traficadas. Vendidas. Violadas. Escravizadas.
É cruel escrever assim, mas não mais cruel do que a realidade. Segundo a ONU, uma em cada três vítimas de tráfico humano no mundo é criança. No Brasil, o tráfico de pessoas opera com diversos fins: exploração sexual, trabalho forçado, remoção de órgãos e até adoções ilegais por meio de redes internacionais.
Não é exagero: nos anos 1980, Arlete Hilú comandou um dos maiores esquemas de tráfico de crianças do país, estimando-se que até 12 mil bebês tenham sido levados ilegalmente para adoção no exterior. O caso foi abafado, mal documentado, e hoje vive apenas nas entrelinhas da memória institucional — um silêncio que, ainda hoje, grita.
O sumiço que ninguém vê
Enquanto o crime se moderniza, nossas instituições muitas vezes operam com ferramentas enferrujadas. Falta preparo, falta estrutura, falta um protocolo unificado de ação rápida — e, acima de tudo, falta escuta ativa às famílias.
Uma ideia equivocada ainda circula entre os próprios agentes públicos: a de que é preciso esperar 24 horas para registrar o desaparecimento de uma criança. O Ministério da Justiça lançou a campanha “Não Espere 24h” justamente para desconstruir essa crença, reforçando que cada minuto conta.
A negligência institucional também tem raízes na ausência de dados consistentes. O Brasil sequer tem um cadastro nacional atualizado de crianças desaparecidas, o que dificulta cruzamentos e localizações em tempo real. Sem dados, não há estratégia. Sem estratégia, não há salvação.
Quando a infância vira armadilha
Não são apenas brinquedos abandonados nas calçadas que chamam atenção de crianças. São adultos sorridentes com doces, são vozes familiares no portão da escola, são perfis falsos no TikTok, são convites para jogos, são mulheres gritando “Marco” como se chamassem um sobrinho. As redes criminosas estudam o comportamento infantil com o mesmo cuidado com que um predador observa sua presa.
A lógica da exploração infantil passou a se esconder nos lugares onde a inocência mora: no recreio, no shopping, na fila do supermercado. Na brincadeira.
A proteção começa antes do perigo
A resposta, ao contrário do que muitos pensam, não está apenas na vigilância, mas na educação preventiva. Pais, escolas e comunidades precisam ensinar as crianças a reconhecer riscos sem aterrorizá-las. Explicar que nem todo adulto é confiável. Que algumas brincadeiras não devem ser respondidas. Que tudo o que parecer estranho, provavelmente é.
Ferramentas como o Alerta AMBER (nos EUA) e iniciativas internacionais da UNODC têm mostrado como a comunicação integrada pode funcionar, desde que haja mobilização nacional.
Mas acima de tudo, é preciso vontade política e compromisso com a infância.
A infância sequestrada
Essa matéria não é sobre pânico. É sobre escuta. Sobre atenção. É sobre aquilo que a gente sabe, mas empurra para o fundo da consciência: que há um sistema criminoso agindo entre nós — nas nossas ruas, mercados, parques e telas.
Que a infância brasileira está em risco.
E que um simples “Marco?” pode ser mais do que uma voz qualquer chamando no corredor. Pode ser um aviso. Pode ser o primeiro passo para um desaparecimento. Ou, com sorte, para a prevenção.
Em casos de suspeita ou confirmação de sequestro, aliciamento ou desaparecimento de crianças, é fundamental agir com rapidez. Denúncias podem ser feitas anonimamente pelo Disque 100, canal do Ministério dos Direitos Humanos que funciona 24 horas por dia, inclusive nos finais de semana. Outra opção é o Disque 190, da Polícia Militar, que deve ser acionado imediatamente em situações de emergência. O portal da Polícia Federal e o site Missing Kids Brasil, mantido pela Fundação Abrinq em parceria com órgãos públicos, também oferecem orientações e ajudam na busca por crianças desaparecidas. Toda informação, por menor que pareça, pode ser crucial para salvar uma vida.
Créditos e fontes:
- Relatório do Ministério da Justiça e Segurança Pública (2023–2024): gov.br
- ONU – Escritório sobre Drogas e Crime (UNODC), Relatório Global de Tráfico de Pessoas
- Caso Arlete Hilú: Arquivos públicos e reportagens históricas
- Instituto Brasileiro de Direito de Família – Pesquisa sobre negligência institucional
- Plataforma Alerta AMBER e campanhas “Não Espere 24h”