Na série Only Murders in the Building, sucesso da Hulu estrelado por Steve Martin, Martin Short e Selena Gomez, três vizinhos fascinados por true crime se envolvem na investigação de um assassinato ocorrido em seu prédio de luxo em Nova York. Armados com microfones e uma curiosidade sem freios, eles criam um podcast para narrar o caso em tempo real — tropeçando em pistas, suspeitos e consequências reais que escapam ao controle da ficção.
O que começa como comédia ganha um tom mais sombrio quando observamos o reflexo dessa narrativa na vida real. À medida que o consumo de podcasts de true crime, documentários policiais e fóruns como o Reddit explodiu nos últimos anos, também aumentou a figura do “detetive amador” — um civil movido por empatia, obsessão ou vontade de justiça que decide investigar casos não resolvidos por conta própria. Mas até onde vai o impulso por ajudar, e quando ele começa a ultrapassar os limites da ética, da privacidade e da segurança?
A linha tênue entre curiosidade e interferência
A jornalista Jill Lepore, professora em Harvard e autora de If Then, alertou em uma entrevista que a “democratização da investigação criminal” pode ter efeitos colaterais sérios. “O que fazemos com o poder da informação quando nos sentimos parte da história?” — questiona. Essa sensação de protagonismo — muitas vezes impulsionada pelas redes sociais — transforma civis em investigadores não-oficiais, com ferramentas mínimas e acesso a dados superficiais. Mas os impactos são reais.
Um exemplo trágico é o caso de Gabby Petito, influenciadora americana de 22 anos desaparecida em setembro de 2021 durante uma viagem com o noivo, Brian Laundrie. O desaparecimento rapidamente virou trending topic nas redes, com youtubers, tiktokers e membros de fóruns colaborativos tentando “resolver o mistério”. Centenas de vídeos foram publicados com teorias, cronogramas alternativos, análises de imagens e especulações sobre o comportamento do casal.
Embora parte das descobertas do público — como a gravação acidental feita por outro casal de viajantes, que avistou a van de Gabby — tenha ajudado a localizar o corpo da jovem, especialistas alertam que a enxurrada de conteúdo também alimentou rumores, expôs familiares à pressão constante e dificultou o trabalho das autoridades.
Entre a justiça e o espetáculo
A espetacularização de crimes reais não é novidade, mas ganha contornos mais complexos na era digital. O caso de Laci Peterson, assassinada em 2002 na Califórnia enquanto estava grávida de oito meses, foi intensamente explorado por internautas. Grupos no Reddit e sites inteiros se dedicaram a debater a culpa ou inocência do marido, Scott Peterson, que foi condenado à morte. Anos depois, documentários reacenderam o caso, trazendo novas hipóteses e reacendendo discussões — muitas vezes descoladas de evidências processuais.
Esses movimentos populares podem gerar consequências inesperadas: desde linchamentos morais até a reabertura de investigações, passando por ataques à privacidade de pessoas inocentes envolvidas perifericamente nos casos.
O lado sombrio da “justiça colaborativa”
O fenômeno do citizen detective já foi exaltado em projetos como The Doe Network, que reúne voluntários para ajudar a identificar pessoas desaparecidas. Mas, como pontua a criminóloga Michelle Kazmer, o envolvimento público pode tornar-se tóxico quando alimentado por desejo de protagonismo, monetização de conteúdo ou teorias conspiratórias.
O documentário Don’t F**k With Cats, da Netflix, ilustra bem esse paradoxo: um grupo de internautas resolve caçar um homem que postava vídeos de crueldade contra animais. A caçada leva à identificação de um assassino real — mas também revela os perigos de se brincar de detetive em um mundo onde a internet não tem freios.
A cultura do entretenimento e a dessensibilização
Séries como Only Murders in the Building parecem inofensivas à primeira vista, mas refletem um imaginário em que o crime vira conteúdo. A estética colorida, os diálogos rápidos e o tom de mistério cômico criam um distanciamento confortável, como se investigar um assassinato fosse apenas mais um hobbie excêntrico.
No entanto, como lembrou a jornalista Tressie McMillan Cottom em uma coluna no New York Times, “a cultura do true crime não nos ensina empatia, mas consumo”. Quando o drama alheio vira entretenimento, corremos o risco de normalizar a dor — ou pior, de nos sentirmos parte ativa de uma história que não nos pertence.
O fascínio por crimes reais parece inevitável. Somos movidos por curiosidade, senso de justiça e vontade de entender o incompreensível. Mas à medida que a fronteira entre ficção e realidade se dilui, e que o algoritmo recompensa a viralização de teorias e pistas, cabe uma reflexão: o que estamos realmente buscando ao tentar resolver um crime do sofá de casa? Justiça — ou protagonismo?