Nem toda maternidade é biológica. E nem toda polêmica é real.

O que assusta, no fundo, não é uma mulher trocando a fralda de uma boneca. É ver um país inteiro debatendo isso como se fosse epidemia, enquanto ignora dados reais sobre abandono infantil, saúde mental e fome.

De repente, como se surgisse de um vácuo, o Brasil pareceu se transformar em uma grande maternidade alternativa. Em timelines, vídeos e manchetes, uma enxurrada de conteúdos sobre pessoas adultas tratando bonecas como bebês reais, os chamados bebês reborn, ocupou espaço e despertou reações apaixonadas. Teve gente propondo leis para barrar supostos atendimentos no SUS para “mães de boneca”. Outros afirmavam que a prática era um reflexo alarmante de distúrbios mentais não diagnosticados. Havia até quem gritasse por uma intervenção psiquiátrica coletiva.

Mas ao investigar os números e os fatos por trás dessa comoção, o que encontramos é algo bem diferente do que a gritaria nas redes sociais sugere. Até o momento, não há registros públicos* ou reportagens documentadas sobre atendimentos no SUS relacionados a adultos confundindo bonecas com bebês reais. A histeria coletiva que tomou forma digital nasceu, na verdade, de dois ou três vídeos virais e um nicho de conteúdo altamente compartilhável e altamente opinativo.

Segundo a análise do Google Trends e dados extraídos da plataforma Pulsar/FGV, que monitora o comportamento digital, as buscas por “bebê reborn” cresceram 62% entre janeiro e abril de 2025. Entretanto, não há dados relatando um grande aumento no faturamento de vendas. Trata-se de uma microcomunidade barulhenta, mas ainda assim micro.

A matéria da InfoMoney “Muito hype, pouca estatística“, publicada em maio de 2025, já alerta para a desproporcionalidade entre o ruído digital e a realidade mensurável. O texto apontava que essa hipervisibilidade se transformou, rapidamente, em combustível para narrativas políticas e moralistas. O alvo? Mulheres. A suspeita de sempre: desequilíbrio mental. Em nenhum momento se falou da solidão, da carência afetiva, do uso terapêutico validado dessas bonecas em contextos como o de idosos com Alzheimer, prática adotada em casas de repouso de países como Reino Unido e Japão.

O uso de bonecas reborn como ferramenta terapêutica já foi estudado e documentado em diversos contextos clínicos ao redor do mundo. Um exemplo é a chamada doll therapy, aplicada principalmente em pacientes com demência, como os que vivem com Alzheimer. O artigo “Doll Therapy for Dementia”, publicado pela revista BMC Psychiatry em 2020, aponta benefícios como a redução da ansiedade, da agitação e de comportamentos agressivos em idosos institucionalizados. Nessas situações, a interação com bonecas é compreendida como uma forma simbólica de reconexão emocional, que pode trazer conforto e sensação de propósito, especialmente em um cenário de perda cognitiva progressiva. O que se observa, portanto, não é a presença de uma patologia associada ao uso das bonecas, mas sim um recurso de cuidado afetivo validado por estudos sérios em saúde mental.

O fenômeno dos reborns, no Brasil, é muito mais uma expressão da crise de afeto contemporânea do que uma patologia. Vivemos a era da hiperexposição e da hiperopinião. Algo pode ser estranho à primeira vista, mas isso não é sinônimo de doença. Aliás, a patologização da diferença é um velho truque social para manter o status quo.

Mais do que isso: o caso é um retrato claro de como a internet pode fabricar emergências sociais. Vivemos uma aceleração de escândalos fabricados. Um conteúdo ganha visibilidade, depois ganha uma interpretação distorcida, e logo se torna campo de batalha para influenciadores, políticos e colunistas indignados. Tudo isso sem que, na vida real, o fenômeno tenha escala para tanto.

O que assusta, no fundo, não são as bonecas, mas a forma como perdemos a capacidade de diferenciar comportamento de nicho de comportamento de massa. A prática de colecionar ou interagir com reborns pode ter, sim, aspectos simbólicos profundos, inclusive como ferramenta de enfrentamento da solidão, tema apontado como um dos maiores desafios de saúde pública do nosso tempo pela OMS. Mas transformar isso em histeria coletiva só revela o quanto ainda somos reativos àquilo que não compreendemos à primeira vista.

Se há algo preocupante nisso tudo, talvez não seja o fato de uma mulher trocar a fralda de uma boneca. Mas o de um país inteiro estar disposto a debater isso como se fosse uma epidemia, enquanto ignora estatísticas reais sobre fome, saúde mental, violência doméstica e abandono de crianças reais.

Afinal, engajamento não é prova social. E nem toda manchete gritada na internet merece virar política pública.

*É importante dizer que sim, quando a linha entre a brincadeira e a realidade se apaga completamente, quando alguém passa a organizar a rotina como se realmente tivesse um filho em casa, com todas as implicações emocionais e práticas disso, vale sim procurar orientação especializada. Confundir fantasia com realidade pode ser sinal de que algo mais profundo precise de atenção, mas isso não significa que todas as pessoas que colecionam ou interagem com bonecas reborn estão em desequilíbrio. O ato de colecionar bonecas reborns, em muitos casos, não difere tanto de um homem que guarda suas action figures com cuidado obsessivo, ou que investe pequenas fortunas em acessórios e expositores. Sim, bonecos. Sim, afeto projetado. Também existem encontros, comunidades, trocas, manuais, e até “cuidados” com a conservação. A diferença está no olhar que a sociedade lança sobre essas práticas: quando vem de mulheres, o zelo parece sempre precisar de justificativa. Quando vem de homens, é quase sempre aceito como hobby. Essa diferença não é técnica, é cultural. E profundamente enviesada.

1. Consultando o DataSUS (Tabnet – Ministério da Saúde)

O DataSUS permite consultas por códigos de diagnóstico (CID-10) e procedimentos ambulatoriais e hospitalares. No entanto:

Não existe um CID específico para esse tipo de caso (ex.: “tratamento por confusão entre boneca e bebê real”).
O mais próximo que se poderia investigar seria a frequência de atendimentos relacionados a transtornos dissociativos, delírios ou síndromes psicóticas (como F22 ou F44 na CID-10), mas isso não indicaria ligação direta com o caso de bonecas reborn.

**Estudos sobre o mercado:

– Embora não haja um relatório único e oficial com percentuais exatos sobre todo o mercado brasileiro de reborns, há indicadores claros de crescimento expressivo:

Google Trends: Mostra um pico histórico de interesse em “bebê reborn” entre outubro de 2024 e abril de 2025.
UniDoll (loja especializada): Reportou aumento de 33% nas vendas no período recente, segundo seu blog institucional.
Loja “Minha Infância” (BH): Faturamento médio entre R$30 mil e R$35 mil mensais com reborns; datas como Dia das Crianças e Natal triplicam as vendas, indicando crescimento sazonal muito acima do padrão.
Redes sociais: Vídeos de “parto de bebê reborn”, “diários de maternidade” e “adoções simbólicas” viralizaram, contribuindo para o aumento da demanda. Isso não era comum até 2023.

 

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