Nos últimos meses, o Brasil se viu envolvido em uma discussão curiosa e inesperadamente intensa: o crescimento da popularidade dos bebês reborn, bonecas hiper-realistas que reproduzem em detalhes a aparência de recém-nascidos. O tema, que circulava discretamente entre colecionadores e entusiastas, se transformou em fenômeno de audiência, alimentando debates acalorados na internet, matérias de televisão e, em alguns casos, até mesmo reações alarmadas nas redes sociais.
Enquanto perfis de “mães de boneca” viralizam no TikTok e influencers acumulam milhões de curtidas embalando bonecas como se fossem bebês reais, o país continua enfrentando problemas sociais, econômicos e estruturais que afetam a vida de milhões de pessoas — e que merecem muito mais visibilidade do que esse tipo de polêmica sensacionalista.
A seguir, destacamos sete temas de grande impacto nacional que merecem urgentemente ocupar o centro do debate público.
1. Fraudes no INSS e o risco à Previdência
O sistema previdenciário brasileiro sofre com irregularidades que comprometem diretamente o futuro da aposentadoria no país. Em 2024, o governo federal intensificou operações para identificar benefícios pagos de forma fraudulenta, muitos deles por meio de documentos falsos, uso indevido de procurações ou registros de pessoas já falecidas. Estima-se que bilhões de reais são desviados anualmente, enquanto cidadãos que contribuíram corretamente esperam por atendimento ou revisão de seus direitos. A falta de fiscalização eficiente e a lentidão nos processos administrativos agravam a situação. Trata-se de uma crise estrutural que ameaça a sustentabilidade do sistema e precisa ser tratada com a seriedade que merece.
2. A crise da saúde mental no SUS
O número de brasileiros em sofrimento psíquico cresceu exponencialmente nos últimos anos, especialmente entre adolescentes e jovens adultos. A pandemia agravou o cenário e, mesmo após seu auge, os impactos seguem visíveis. Ansiedade, depressão, síndrome do pânico e pensamentos suicidas se tornaram parte da realidade de milhões. No entanto, o acesso a psicólogos e psiquiatras pelo Sistema Único de Saúde ainda é extremamente limitado. Em muitas regiões do país, não há sequer um profissional por município. As filas para atendimento são longas, e o cuidado contínuo, que é essencial nesses casos, é quase inexistente. Ainda assim, o tema continua subestimado na esfera política e nas prioridades orçamentárias.
3. O jogo que vira transtorno
Desde 1980, a Organização Mundial da Saúde reconhece o vício em jogos como um transtorno mental, e as estatísticas atuais revelam a urgência desse problema no Brasil. Estima-se que cerca de 2,3% da população brasileira sofra total ou parcialmente com o transtorno de jogo, o que representa milhões de pessoas vivendo em sofrimento silencioso. A ascensão das apostas online, com sua ampla disponibilidade e forte apelo emocional, tem agravado ainda mais essa situação. Jovens, pessoas de baixa renda e trabalhadores formais estão entre os mais afetados, revelando um cenário que vai além da esfera individual e atinge dimensões sociais, econômicas e de saúde pública. Diante desse panorama, torna-se indispensável o fortalecimento das políticas de regulação, prevenção e acolhimento, para que o jogo deixe de ser uma armadilha e volte a ser, para quem escolher, apenas uma forma consciente de entretenimento.
4. Violência contra a mulher e o aumento dos feminicídios
A cada dia, mais mulheres são assassinadas no Brasil pelo simples fato de serem mulheres. Em 2023, o país registrou mais de 1.400 casos de feminicídio. O número de denúncias de agressão doméstica também cresceu, revelando que os mecanismos de proteção ainda são frágeis, burocráticos e, muitas vezes, ineficazes. Mesmo com a existência da Lei Maria da Penha, muitas vítimas não conseguem se proteger a tempo. O silêncio institucional diante dessa tragédia recorrente é estarrecedor. A sociedade precisa olhar com mais seriedade para essa violência sistêmica que mata, fere e amedronta milhares de brasileiras todos os anos.
5. A devastação do Cerrado e as mudanças climáticas
Embora o desmatamento na Amazônia tenha mostrado sinais de desaceleração, o Cerrado, bioma fundamental para a manutenção das águas do país, registrou recordes históricos de devastação. A expansão descontrolada do agronegócio, a grilagem de terras e a falta de fiscalização têm colocado em risco um dos ecossistemas mais importantes do Brasil. As consequências da destruição ambiental já são sentidas nas cidades: ondas de calor extremo, chuvas intensas, enchentes e colapsos em infraestruturas urbanas. Ignorar essas transformações é comprometer o futuro climático do país — e do planeta.
6. Colapso na educação pública
A pandemia provocou uma defasagem grave no aprendizado de estudantes da rede pública, que ainda não foi superada. Muitos alunos não recuperaram conteúdos básicos, e o índice de evasão escolar segue preocupante, especialmente entre adolescentes de regiões periféricas. Professores enfrentam salas superlotadas, falta de materiais e baixos salários. A educação pública brasileira vive um colapso silencioso que compromete gerações inteiras. Sem investimento em estrutura, formação e valorização docente, será impossível promover inclusão, cidadania e desenvolvimento sustentável.
7. A precarização do trabalho e a “uberização” da economia
Nos últimos anos, milhões de brasileiros migraram para formas de trabalho informal, sobretudo por aplicativos, sem vínculo empregatício ou garantias trabalhistas. A promessa de flexibilidade e autonomia muitas vezes esconde jornadas exaustivas, insegurança e renda instável. Enquanto plataformas digitais lucram bilhões, entregadores e motoristas enfrentam longas horas nas ruas, sem benefícios mínimos como férias, décimo terceiro ou auxílio-doença. O país precisa urgentemente discutir novas formas de regulamentação e proteção para esses trabalhadores, que hoje representam uma parte significativa da força de trabalho urbana.
Por que estamos prestando atenção ao que não importa?
Não se trata de menosprezar o fenômeno dos bebês reborn, que pode, sim, ter uma dimensão afetiva válida para algumas pessoas. O problema está na desproporção do espaço midiático e social dado a temas como esse, enquanto questões de profunda urgência nacional seguem sem debate qualificado.
Vivemos tempos em que o algoritmo das redes sociais decide o que importa — e o que não importa — com base em cliques e engajamento emocional. Mas o Brasil real precisa de mais do que curtidas e polêmicas passageiras. Precisa de atenção, ação e políticas públicas que respondam à altura dos desafios que enfrentamos.
*Errata: o Brasil saiu do mapa da fome em 2023