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O pão e a Física

Ramiro Murillo, nomeado como o melhor padeiro do Brasil em 2023 pela FIPAN (Feira Internacional da Panificação), une o mundo da panificação com suas paixões artísticas e científicas, redefinindo a forma como pão é feito. Com uma trajetória marcada por um profundo envolvimento com arte e ciência desde sua juventude, Ramiro Murillo construiu uma carreira única que culminou na criação da El Panadero, uma boulangerie que é uma verdadeira sinfonia de técnica, arte, paixão e dedicação.

O interesse de Ramiro por ciências nasceu da influência familiar, tendo uma linhagem de engenheiros e professores. Sua habilidade natural para exatas o conduziu à escola técnica, mas também foi na mesma época que ele começou a explorar a música, o teatro e a dança, ampliando seu horizonte criativo.

‘Com certeza há uma influência do meu pai. Ele, meu tio e meu avô eram engenheiros. E minha mãe, professora de biologia. E eu desde cedo desenvolvi uma habilidade com exatas. Já criança eu tinha muita facilidade com geometria, cálculos, sempre me empolgava muito com a feira de ciências. Aos 13 anos, por estímulo de meu pai e avô, eu prestei um tipo de vestibular para cursar uma escola técnica no que seria hoje o ensino médio. Eu me saí super bem e entrei em eletrônica, na Escola Técnica Federal de São Paulo, no Canindé. Só que foi na mesma época que comecei a tocar guitarra, fazer aula de teatro etc”, diz ao indicar o conflito que dividiria muito de suas decisões ao longo da vida. 

Ao entrar na faculdade aos 18 anos, a indecisão entre Matemática, Filosofia, Física e Cinema o levou a uma escolha ousada e inesperada: ciências sociais. Porém, o chamado da Física foi irresistível ao descobrir a beleza do que é conhecido hoje como “mecânica dos fluidos” em um projeto artístico científico. Então, Ramiro fez uma reviravolta, voltando às suas raízes científicas e trocando sua inscrição de curso para Física na última hora.

Novo renascentista

Em meio a sua trajetória acadêmica, Ramiro descobriu e aprofundou sua paixão pela dança contemporânea e pela música, novamente caindo no dilema de se encontrar profissionalmente. No terceiro ano da faculdade, ele percebeu que a carreira científica não era tão poética quanto imaginava, levando-o a explorar a interseção entre suas paixões artísticas e científicas.

“No 3º ano eu comecei a perceber que a carreira de cientista não era tão poética quanto imaginava. A carreira acadêmica em ciências exatas é extremamente mental e matemática. Eu virava noites fazendo trabalhos, demonstrando teoremas, usando todas as letras do alfabeto indo arábico e grego para tentar formular fenômenos naturais em equações e percebi que aquilo estava fazendo mal para a minha saúde psicológica. Na época, eu já era um bailarino profissional, apresentando em São Paulo, outros estados do Brasil e até na França”, conta.

Foi durante esse período que ele dirigiu solos de dança inspirados em conceitos físicos e começou a aplicar princípios científicos na culinária. Ramiro aprendeu a arte da panificação, combinando sua paixão por cozinhar com a meticulosidade da ciência. Ele transformou a panificação em um laboratório criativo, onde a física da fermentação, a química dos ingredientes e a arte de modelar a massa se fundem.

“Fazer comida foi um movimento totalmente novo em minha vida. Por mais que tenha experimentado diversas profissões, trabalhar com comida nunca tinha sido uma possibilidade. Eu gostava de cozinhar, mas era algo mais prático, pra comer e pronto. Porém, um dia provei o pão de fermentação natural e daí você já sabe a história. O pão era o caminho rentável para colocar a cozinha na minha vida. Então, padeiro com poucos recursos, eu estava voltando às minhas raízes. A cozinha era um laboratório, um estúdio de ensaio. Eu comecei a entender que o que me fascina é o artesanal, usar as mãos: o violão, a dança, a câmera fotográfica, o cozinhar.”

A ciência entrou de que maneira? De uma maneira renascentista: sem compartimentação do conhecimento. Estava finalmente usando a ciência da maneira que sempre quis: com o corpo, espírito e mente. O padeiro tem que orquestrar a fermentação de milhões de bactérias e leveduras. Usando apenas um termômetro e balança, algumas planilhas de excel e muita sensibilidade, eu tinha que orquestrar tudo aquilo para que o pão saltasse no forno gritando: ‘eu venci!’”, compartilha ao refletir sobre toda a sua trajetória até encontrar o pão. 

Toda a sua jornada culminou na iminente fundação da El Panadero, a boulangerie onde Ramiro Murilo utiliza sua abordagem artística e científica para criar pães excepcionais. Cada pão se torna uma expressão de sua paixão, habilidades e conhecimentos interdisciplinares.

Hoje, a aplicação da Física nas receitas da El Panadero é mais uma experiência vivencial do que a aplicação de fórmulas complexas. O padeiro busca transmitir os princípios fundamentais à sua equipe, permitindo que eles tomem decisões corretas. Começam aprendendo a replicar as ações e, gradualmente, entendem o porquê por trás delas. Conceitos como elasticidade, extensibilidade, coesão, tenacidade, estrutura, tensão, relaxamento, força e absorção entram em jogo.

A compreensão básica da física da panificação é essencial. Por exemplo, sabe-se que temperaturas mais altas aceleram a fermentação e que sovar demais uma massa de pão pode desenvolver sua estrutura, mas também rompê-la. A tarefa do padeiro é orquestrar todos esses elementos durante a produção.

“A física da panificação que as pessoas precisam saber é básica. Quanto mais quente, mais rápida a fermentação. Quanto mais sovar, mais se desenvolve a estrutura, mas pode passar do ponto e romper. Pensando nestes dois conceitos, o padeiro tem que orquestrar tudo na produção.

Eu uso a mente de cientista na padaria para padronizar tudo. São planilhas e planilhas, controles de processos, porcentagem de ingredientes, muitas balanças e termômetros. Neste sentido, sou obcecado em que meçam e registrem tudo, para termos um dado histórico dos nossos processos. É assim que a San Francisco Bakery Institute trabalha e faz total sentido. O padeiro precisa otimizar processos”, afirma Ramiro.

Embora não seja necessário saber fórmulas específicas de física, os princípios de elasticidade da matéria e influência da temperatura em reações químicas e biológicas são aplicados. Alguns padeiros até conduzem estudos avançados das reações de fermentação, incorporando conhecimentos de química e biologia.

“Então eu uso a física hoje da mesma maneira em que usava em meus solos de dança: com meu corpo e minha vivência. Eu sou a massa. A massa é fruto do trabalho manual do padeiro. E uso a música também: na final da Fipan, o padeiro mestre Gugel, de Pernambuco e que treinou os 2 padeiros que ficaram em 2 e 3 lugar, me disse: quando vi você fazendo as baguetes, aquilo parecia uma sinfonia, deu para entender que você é músico realmente. Nunca ninguém me disse isso, me comoveu muito, pois entendi que é assim que me sinto hoje, um orquestrador de massas”, compartilha.

Ramiro redefiniu a panificação como uma sinfonia de processos, harmonizando a ciência, a arte e a dedicação. Seu compromisso com a excelência, sua compreensão profunda da física envolvida e sua abordagem criativa resultam em pães que são verdadeiras obras-primas culinárias.

“E para fechar com uma frase que sempre me marcou de um padeiro que escreveu um lindo livro sobre como desenvolver um miolo aberto no pão ‘Open Crumb Mastery’, o norteamericano Trevor Jay Wilson: ‘O pão nunca será melhor do que o próprio padeiro’.

Eu acredito muito nisso. Não dá pra fazer um pão melhor que você. Se você quer fazer um pão melhor, melhore a si mesmo: reveja seus valores, procure disciplina, seja íntegro, não ceda a atalhos, desenvolva a sensibilidade, não desista fácil, não se iluda com a vaidade. É assim que entendo essa frase”, finaliza.

A El Panadero fica na Rua Amália de Noronha, 251, no Pacaembu e a boulangerie funciona de terça a sexta das 8 às 17h e nos sábados das 8 às 13h. 

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